CONTRATAÇÃO DE ADVOGADO, LICITAÇÃO? - MEF35198 - BEAP

 

 

LUÍZA AMÂNCIO FERREIRA *

 

 

                Licitação nada mais é do que o procedimento administrativo para a contratação de obras, serviços, alienações, compras e locações pela Administração Pública, cujo resultado pode gerar um contrato administrativo. Vê-se, pois, que, em regra, a licitação precede o contrato administrativo.

                O instituto da licitação foi introduzido no Direito Público brasileiro pelo Decreto nº 2.926, de 14 de maio de 1862, que regulamentava as arrematações dos serviços do então Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Ao longo dos anos, várias normas trataram da matéria, que foi consolidada e regulamentada, no âmbito federal, pelo Decreto nº 4.536, de 28 de janeiro de 1922, aprovando o regulamento para a execução do Código de Contabilidade da União.

                Desde então, o procedimento licitatório vem sofrendo alterações por outras normas editadas, tendo o Decreto-Lei nº 2.300, de 21 de novembro de 1986, estabelecido regras sobre licitações e contratos da Administração Federal.

                Com o advento da Constituição de 1988, a licitação passa a ser obrigatória para a Administração Pública, tanto a direta quanto a indireta, observadas as exceções previstas legalmente, consoante dispõe o inciso XXI do art. 37:

 

                Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, e também ao seguinte:

(...)

                XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

 

                A Carta Magna estabeleceu, em seu art. 22, inciso XXVII, que a competência para legislar sobre normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, é privativa da União, mas dispôs que lei complementar pode autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas relacionadas à matéria¹.

                Regulamentando o dispositivo constitucional, foi editada a Lei de Licitações, alterada pelas Leis nºs 8.883/94, 9.648/98 e 9.854/99, que instituiu normas para licitações e contratos administrativos da Administração Pública. Outros diplomas legais introduziram inovações, como a Lei nº 10.520/02, que criou a modalidade Pregão, e a Lei nº 12.462/11, que instituiu o Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC.

                De acordo com o art. 3º da Lei de Licitações, a licitação visa a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública. É o que dispõe o citado dispositivo legal, in verbis:

 

                Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.

 

                Como se observa, a licitação pode ser definida como um procedimento administrativo que visa a selecionar a proposta mais vantajosa - vale dizer, menos onerosa e com melhor qualidade possível - para os órgãos e entidades da Administração Pública. Assim, qualquer pessoa que preencha as condições previstas no edital pode participar da licitação, visto que é obrigação da Administração Pública dar a todos a oportunidade de participar, sem favoritismo algum.

                Nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho², licitação é:

                Procedimento administrativo vinculado por meio do qual os entes da Administração Pública e aqueles por ela controlados selecionam a melhor proposta entre as oferecidas pelos vários interessados, com dois objetivos - a celebração de contrato, ou a obtenção do melhor trabalho técnico, artístico ou científico.

                A licitação visa a assegurar aos administrados a oportunidade de participar dos negócios que a Administração Pública pretenda realizar, bem como garantir que a contratação seja a mais vantajosa para todos os entes administrativos que dela se utilizam.

                Consiste numa sequência de atos preparatórios, uma vez que sua natureza jurídica é a de procedimento administrativo seletivo, a fim de anteceder e fundamentar uma decisão administrativa e planejar as providências necessárias à sua execução.

                A licitação é dividida em duas fases: a interna, que parte de um processo para um procedimento, e a externa, que se inicia com a publicação do edital, por meio do qual a Administração Pública divulga seu objetivo e estabelece as condições para que os possíveis interessados participem do certame.

                Note-se que a liberdade do Poder Público quanto à contratação de forma livre fica restringida, na medida em que deve se valer sempre do procedimento licitatório, em busca da proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse.

                A Lei nº 8.666/93 estabelece as condições necessárias à realização da licitação, quem está obrigado a licitar, os requisitos para a participação, as modalidades e os cabimentos, bem como as hipóteses que afastam o dever de licitar. Essas exceções demonstram que o dever de licitar não é absoluto e evidenciam a possibilidade de contratação direta, seja pela dispensa, inexigibilidade ou vedação.

                Pode-se dividir a dispensa de licitação em “dispensada”, ou seja, aquela que não deve ser instaurada, e em “dispensável”, a que pode, ou não, ocorrer. Já a inexigibilidade encerra a ideia de que seria inviável ou impossível a realização da licitação. Assim, as hipóteses de dispensa de licitação são taxativas, enquanto as de inexigibilidade são meramente exemplificativas.

                Após esta breve introdução, vou ater-me à especificidade do tema propriamente dito.

                O art. 25 trata da inexigibilidade de licitação, que deverá ser invocada quando houver inviabilidade de competição, especialmente para a contração de profissionais ou empresas de notória especialização para a prestação de serviços técnicos de natureza singular.

                Contudo, “inviabilidade de competição” não é um conceito simples, que engloba uma única ideia: trata-se de um gênero com várias espécies. É situação que se configura, em síntese, em função da ausência de pressupostos necessários à realização do certame licitatório.

                Podemos dividir a inexigibilidade de licitação em dois grandes grupos, considerando o sujeito a ser contratado ou o objeto a ser contratado.

                Cabe utilizar a inexigibilidade de licitação quanto ao sujeito nos casos em que houver inviabilidade de competição por ausência de pluralidade de sujeitos em condição de contratação, ou seja, quando não é possível a competição, pois apenas um sujeito possui os requisitos necessários à contratação pela Administração Pública. É o que podemos extrair da leitura do inciso I do art. 25 da Lei de Licitações.

                Considerar o objeto da contratação, a seu turno, significa dizer que, embora possam existir diversos sujeitos que desempenhem a atividade que satisfaz a necessidade estatal, esse fato não viabiliza a competição, pois o trabalho realizado pelo profissional emana diretamente da sua pessoa e da sua criatividade, não se sujeitando a fatores objetivos de avaliação. Tal previsão está contida no inciso III do art. 25 da Lei de Licitações.              O inciso II do mencionado artigo prevê a inviabilidade de competição relacionada diretamente com a contratação de serviços técnicos especializados, de natureza singular, realizados por profissionais ou empresas de notória especialização, enumerados no art. 13 do mesmo diploma legal, in verbis:

               

                Art. 13. Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a:

                I - estudos técnicos, planejamentos e projetos básicos ou executivos;

                II - pareceres, perícias e avaliações em geral;

                III - assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias;

                IV - fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços;

                V - patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;

                VI - treinamento e aperfeiçoamento de pessoal;

                VII - restauração de obras de arte e bens de valor histórico.

                § 1º Ressalvados os casos de inexigibilidade de licitação, os contratos para a prestação de serviços técnicos profissionais especializados deverão, preferencialmente, ser celebrados mediante a realização de concurso, com estipulação prévia de prêmio ou remuneração.

                § 2º Aos serviços técnicos previstos neste artigo aplica-se, no que couber, o disposto no art. 111 desta Lei.

                § 3º A empresa de prestação de serviços técnicos especializados que apresente relação de integrantes de seu corpo técnico em procedimento licitatório ou como elemento de justificação de dispensa ou inexigibilidade de licitação, ficará obrigada a garantir que os referidos integrantes realizem pessoal e diretamente os serviços objeto do contrato.

 

                Da leitura do dispositivo legal acima transcrito, verifica-se que não são todos e quaisquer prestadores de serviços que podem ser contratados de forma direta, mas, sim, aqueles que possuam prestígio e reconhecimento no campo de sua atividade. É necessário que os serviços tenham natureza singular e o profissional ou empresa, notória especialização.

                Notória especialização é a qualificação dada a profissional ou empresa bem conceituada em seu campo de atividade. O art. 25, § 1º, da Lei nº 8.666/93, define como de notória especialização o profissional cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudo, experiências, publicações, dentre outros, permita inferir que seu trabalho é, indiscutivelmente, o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.

                Natureza singular, por sua vez, não está relacionada ao número de pessoas capazes de executar o serviço nem significa ausência de pluralidade de sujeitos em condições de desempenhar o objeto. Está, na verdade, relacionada à natureza do serviço a ser prestado. Caracteriza-se como um serviço invulgar, incomum, impossível de ser prestado por qualquer profissional, mesmo que especializado. Singular não se confunde com único, mas, sim, a notável, especial. Destarte, cumpre dizer que o objeto é singular, pois necessita de ser executado por um profissional de notório saber, e que necessita deste profissional exatamente por ser singular.

                Para melhor conceituar serviço singular, cabe lembrar o entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello³:

                Serviços singulares são os que se revestem de análogas características. De modo geral são singulares todas as produções intelectuais, realizadas isolada ou conjuntamente - por equipe -, sempre que o trabalho a ser produzido se defina pela marca pessoal (ou coletiva), expressa em características científicas, técnicas ou artísticas importantes para o preenchimento da necessidade administrativa a ser suprida. Neste quadro cabem os mais variados serviços: uma monografia escrita por experiente jurista; uma intervenção cirúrgica realizada por qualificado cirurgião; uma pesquisa sociológica empreendida por uma equipe de planejamento urbano; um ciclo de conferências efetuado por professores; uma exibição de orquestra sinfônica; uma perícia técnica sobre o estado de coisas ou das causas que o geraram.

                Todos estes serviços se singularizam por um estilo ou por uma orientação pessoal. Note-se que singularidade mencionada não significa que outros não possam realizar o mesmo serviço. Isto é, são singulares, embora não sejam necessariamente únicos.

                No mesmo sentido, Eros Roberto Grau4 afirma:

                Singulares são porque apenas podem ser prestados, de certa maneira e com determinado grau de confiabilidade, por um determinado profissional ou empresa. (...) Ser singular o serviço, isso não significa seja ele necessariamente o único. Outros podem realizá-lo, embora não o possam realizar do mesmo modo e com o mesmo estilo de um determinado profissional ou de uma determinada empresa.

                Como se vê, existem dois requisitos intrínsecos para as hipóteses de inexigibilidade de licitação: um é objetivo, ou seja, a singularidade do objeto (serviço); o outro é subjetivo e guarda referência com os atributos do contratante (notória especialização).

                Vamos, a partir deste momento, aplicar os citados requisitos para a contratação de advogado por meio de inexigibilidade de licitação e trazer o entendimento dos Tribunais sobre a matéria.

                Trata-se de tema gerador de polêmicas. Daí por que muitas têm sido as ações judiciais propostas contra a contratação, sem prévia licitação, de profissionais da advocacia. Na verdade, há uma série de aspectos envolvidos nas questões suscitadas, que demandam reflexão jurídica.

                Para Floriano de Azevedo Marques5, são três os motivos que multiplicam as iniciativas de impugnação judicial de contratação direta de advogados:

                Tal situação não é aleatória. Tais iniciativas são movidas por três raciocínios, todos aviltantes à profissão. Um, há a aversão à advocacia liberal, autônoma e independente. Nesta linha de pensar, são frequentes os posicionamentos que querem interditar que o Estado contrate a prestação de serviços jurídicos de profissionais que com ele não possuam vínculo empregatício ou funcional. É o que chamo da ideologia da exclusividade da carreira pública, que se adotada acabaria por impedir que a Administração conte, em temas específicos complexos, com os melhores especialistas. Dois, há o viés de desqualificar a advocacia como um afazer impregnado do engenho e arte profissional. É o que chamo de tentativa de redução da advocacia a uma prestação vulgar, um bem fungível, uma atividade sem maiores predicados. Três, o mais ardiloso dos móveis, há a tendência ao processo de retaliação contra a atuação do advogado. São cada vez mais comuns os processos ajuizados por quem, atuando como parte numa ação civil pública ou numa ação de improbidade, se depara com um profissional aguerrido e, inconformado com a renhida demanda, retalha o profissional questionando os fundamentos de sua contratação.

                São muitos os advogados consagrados que, não obstante serem exemplo para os mais jovens, vêm sendo constrangidos a se defender em processos criminais ou em ações de improbidade pela singela razão de terem aceitado prestar serviços para o poder público.

                Conquanto seja polêmico o tema da contratação dos profissionais da advocacia de forma direta, não há embasamento jurídico que justifique tal proibição. Pelo contrário, o STF concluiu, no Habeas Corpus 86.198-9/PR6, que existe uma dificuldade em se realizar licitação para contratação de serviços advocatícios:

 

                (...)

                III. Habeas Corpus: crimes previstos nos arts. 89 e 92 da Lei nº 8.666/93: falta de justa causa para a ação penal, dada a inexigibilidade, no caso, de licitação para a contratação de serviços de advocacia.

                (...)

                2. Extrema dificuldade, de outro lado, da licitação de serviços de advocacia, dada a incompatibilidade com as limitações éticas e legais da profissão (Lei nº 8906/94, art. 34, IV; e Código de Ética e Disciplina da OAB/1995, art. 7º).

 

                Nesse mesmo sentido, dispõe o art. 5º do Código de Ética da Advocacia que “o exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização”. Nada mais mercantil do que a disputa pelo contrato, no certame licitatório, mediante oferta do menor valor de honorários.

                Para corroborar, trago o entendimento do STJ no Recurso Especial 1.192.332/RS7, verbis:

 

                (...)

                É impossível aferir, mediante processo licitatório, o trabalho intelectual do advogado, pois se trata de prestação de serviços de natureza personalíssima e singular, mostrando-se patente de inviabilidade de competição.

               

                Há que se ressaltar que vem prevalecendo nos tribunais superiores o entendimento de que a contratação de escritório de advocacia por inexigibilidade é lícita, uma vez que o que torna o serviço singular é o fato de ser prestado por uma pessoa dotada de notório saber jurídico. Isso significa que não há como separar o objeto do seu executor, já que o serviço é realizado por um profissional reconhecido por seu trabalho.

                Assim, temos que a inviabilidade de competição para a contratação do profissional é determinada pelo fato de o objeto ter natureza singular - e assim o é exatamente por ser executado por um profissional que, nos termos da lei, deverá possuir notório saber. “Vale dizer, então, que o objeto é singular porque ele demanda a execução por um notório especialista, e ele demanda este profissional exatamente porque é singular” 8. Isso não significa que outros profissionais não possam realizar o mesmo serviço. O que torna o serviço singular, além da notoriedade do profissional, são suas experiências, seu estilo, sua produção intelectual. É o que se pode verificar na decisão do Recurso Especial 1.192.332/RS9.

 

                ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONTRATAÇÃO DE SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS COM DISPENSA DE LICITAÇÃO. ART. 17 DA LIA. ART. 295, V DO CPC. ART. 178 DO CC/16. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356 DO STF. ARTS. 13 E 25 DA LEI Nº 8.666/93. REQUISITOS DA INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO. SINGULARI-DADE DO SERVIÇO. INVIABILIDADE DE COMPETIÇÃO. NOTÓRIA ESPECIALIZAÇÃO. DISCRICIONARIEDADE DO ADMINISTRADOR NA ESCOLHA DO MELHOR PROFISSIONAL, DESDE QUE PRESENTE O INTERESSE PÚBLICO E INOCORRENTE O DESVIO DE PODER, AFILHADISMO OU COMPADRIO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

                5. A singularidade dos serviços prestados pelo Advogado consiste em seus conhecimentos individuais, estando ligada à sua capacitação profissional, sendo, dessa forma, inviável escolher o melhor profissional para prestar serviço de natureza intelectual, por meio de licitação, pois tal mensuração não se funda em critérios objetivos (como o menor preço).

 

                Verificados os requisitos expostos, cabe ao Administrador, no uso do poder discricionário que lhe é conferido, escolher o profissional que melhor atenderá ao serviço público. Essa escolha deve ser pautada no requisito da confiança, que é estabelecida entre constituinte e constituído. Embora seja um requisito essencialmente subjetivo, a confiança não prescinde de certos requisitos objetivos, entre os quais a notória experiência do especialista e sua boa reputação. Assim, após verificar que o profissional possui notória especialização e, via de consequência, que presta um serviço singular, a Administração deverá escolher aquele em que deposita maior confiança, desde que o considere apto a satisfazer o interesse público.

                Nesse sentido, adverte Eros Roberto Grau10:

               

                (...) Serviços técnicos profissionais especializados são serviços que a Administração deve contratar sem licitação, escolhendo o contratado de acordo, em última instância, com o grau de confiança que ela própria, Administração, deposite na especialização desse contratado. Nesses casos, o requisito da confiança da Administração em quem deseje contratar é subjetivo. Daí que a realização de procedimento licitatório para a contratação de tais serviços - procedimento regido, entre outros, pelo princípio do julgamento objetivo - é incompatível com a atribuição de exercício de subjetividade que o direito positivo confere à Administração para a escolha do “trabalho essencial e indiscutivelmente mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato. O que a norma extraída do texto legal exige é a notória especialização, associada ao elemento subjetivo confiança”.

 

                Vale citar ainda o julgamento do Inquérito nº 3074/SC11:

 

                O caráter parcialmente subjetivo da denominada confiança no profissional pode e deve ser objeto de fundamentação transparente, com o que se permite o controle intersubjetivo quanto à razoabilidade da escolha administrativa. A singularidade do serviço não exige que exista um único profissional apto, mas sim que se demonstre a presença de característica própria do serviço que justifique a contratação de um profissional dotado de determinadas características, em detrimento de outros potenciais candidatos.

               

                Nesta esteira, o entendimento do eminente ministro Sepúlveda Pertence12:

 

                Trata-se de contratação de serviços de advogado, definidos pela lei como “serviços técnicos profissionais especializados”, isto é, serviços que a Administração deve contratar sem licitação, escolhendo o contratado de acordo, em última instância, com o grau de confiança que ela própria, Administração, deposite na especialização desse contratado. É isso, exatamente isso, o que é o direito positivo. (g.n.)

 

                Para corroborar o entendimento esposado, importa assinalar o entendimento do eminente ministro Dias Toffoli no julgamento do Inquérito nº 3.07713:

 

                Penal e Processual Penal. Inquérito. Parlamentar federal. Denúncia oferecida. Artigo 89, caput e parágrafo único, da Lei nº 8.666/93. Artigo 41 do CPP. Não conformidade entre os fatos descritos na exordial acusatória e o tipo previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/93. Ausência de justa causa. Rejeição da denúncia.

                (...)

                3. O que a norma extraída do texto legal exige é a notória especialização, associada ao elemento subjetivo confiança. Há, no caso concreto, requisitos suficientes para o seu enquadramento em situação na qual não incide o dever de licitar, ou seja, de inexigibilidade de licitação: os profissionais contratados possuíam notória especialização, comprovada nos autos, além de desfrutarem da confiança da Administração. Ilegalidade inexistente. Fato atípico.

                4. Não restou, igualmente, demonstrada a vontade livre e conscientemente dirigida, por parte dos réus, de superar a necessidade de realização da licitação. Pressupõe o tipo, além do necessário dolo simples (vontade consciente e livre de contratar independentemente da realização de prévio procedimento licitatório), a intenção de produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação.

                (...)

 

                Vale citar que existem tribunais que entendem que singular é o serviço não corriqueiro, que é caso do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, que assim se posicionou, ao responder à Consulta nº 652.06914, verbis:

 

                O professor Roque Citadini, conselheiro do Tribunal de Contas de São Paulo, em sua obra Comentários e Jurisprudência sobre Lei de Licitações, edição de 1996, sobre o conceito de “natureza singular” do serviço, diz:

                “A singularidade do serviço a ser contratado é requisito indispensável para se justificar a contratação direta com empresa ou profissional notoriamente especializado. Se o serviço, objeto de contratação, for rotineiro, comum, sem exigência de qualquer conhecimento ou técnica de maior complexidade, não há razão para sua contratação sem licitação.”

                Singular é, pois, a característica do objeto que o individualiza, que o distingue dos demais. É a presença de um atributo incomum na espécie. A singularidade não está associada à noção de preço, de dimensões, de localidade, de cor ou de forma. Assim, a singularidade pode incidir sobre um serviço cujo valor esteja abaixo dos limites dos incisos I e II do art. 24 da Lei nº 8.666/93.

                Os serviços rotineiros, corriqueiros, comuns, que vão desde a confecção de balanço, de auditoria contábil, operacional, etc., comparecimento em audiências trabalhistas, em casos de pequenas indenizações, reclamações simples, defesa administrativa num processo de prestação de contas, etc., não podem ser considerados singulares, posto que podem ser realizados por qualquer um que possua habilitação específica e competência para fazê-los, impondo-se a licitação.

                A definição da singularidade deve ser estabelecida exclusivamente à luz do interesse público, e justificada sob os princípios da impessoalidade, legalidade, moralidade e publicidade.

                Com relação à caracterização da notória especialização, deve-se registrar que ela envolve dualidade de conceitos, ou seja, a especialização e a notoriedade.

                Para a regularidade da contratação direta, impõe-se que o profissional ou empresa possua especialização na realização do objeto. E, como indica a palavra, se faz no direcionamento, na busca do conhecimento e no desenvolvimento de certa atividade específica diferenciada. Deve ser aferível, contrastável e, também, deve ser demonstrada. Atualmente é um atributo que por si só não leva ao afastamento da realização da licitação, nem muito menos a credenciar a declaração de inviabilidade de competição.

                (...)

 

                Verifica-se que o próprio conceito legal destaca os requisitos, pressupostos ou características referentes à notória especialização. A lei estabelece os parâmetros a serem utilizados para a aferição da notoriedade, com a finalidade de reduzir a margem de discricionariedade e subjetivismo do administrador.

                E a Consulta nº 735.38515, litteris:

 

                Impossibilidade de contratação direta de serviços rotineiros, que devem ser prestados por quadro próprio de procuradores. Excepcional possibilidade de contratação direta, quando o serviço for singular e houver notória especialização.

                Sedimentando seu entendimento, o TCE-MG editou o enunciado de Súmula nº 106, a fim de demonstrar que as contratações de serviços advocatícios só podem ser realizadas por meio de procedimento de inexigibilidade de licitação se o serviço prestado for singular, isto é, diferente dos que habitualmente são afetos à Administração Pública, vejamos:

                ENUNCIADO DE SÚMULA Nº 106 - Nas contratações de serviços técnicos celebradas pela Administração com fundamento no artigo 25, inciso II, combinado com o art. 13 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, é indispensável a comprovação tanto da notória especialização dos profissionais ou empresas contratadas como da singularidade dos serviços a serem prestados, os quais, por sua especificidade, diferem dos que, habitualmente, são afetos à Administração.

                Assim, embora suscite polêmica, verifica-se que é plenamente lícita a contratação direta de advogado por meio de procedimento de inexigibilidade de licitação, uma vez que o serviço realizado por um profissional de notório saber tem caráter singular, o que preenche os requisitos estabelecidos pelo art. 25, inciso II, da Lei nº 8.666/93. Ademais, para que a Administração Pública contrate o profissional que melhor irá atender o interesse público, os requisitos legais devem ser cumulados com a confiabilidade.

                Por fim, cumpre ressaltar que a contratação deve seguir os procedimentos estabelecidos pela Lei Federal nº 8.666/93, em seu art. 26.

                Em síntese conclusiva, verifica-se que existe incompatibilidade entre o dever de licitar e a contratação de profissionais da advocacia, o que implica a falta de fundamento jurídico que estabeleça a licitação como meio obrigatório para a contratação de advogados pela Administração Pública. Na contratação de serviços jurídicos, a licitação será inexigível porque a advocacia não se exerce dissociada da pessoa do advogado, da capacidade pessoal do profissional, bem como de seu notório saber. Os serviços jurídicos se destacam pelas características pessoais do executor, o que impede sua comparação com outros serviços análogos executados por terceiros. Assim, essas características subjetivas constituem fator de distinção suficiente para afastar o dever de licitar.

                Ademais, se o gestor não puder utilizar seu poder discricionário, escolhendo o melhor profissional dentro dos ditames legais, e tiver de contratar um profissional pelo critério do “menor preço”, a contratação poderá redundar numa assessoria inadequada para o Município, gerando, entre outros efeitos nocivos, a possibilidade de ações em que o gestor incorra em responsabilizações administrativas e até criminais.

 

                NOTAS:

                1 Art. 22, parágrafo único, da Constituição da República, da Lei de Licitações: “Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo”.

                2 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 226.

                3 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros. 2009, p. 535.

                4 GRAU, Eros Roberto. Inexigibilidade de licitação: serviços técnico-profissionais especializados; notória especialização. Revista de Direito Público, v. 25, nº 99, pp. 70-77, jul./set. 1991.

                5 MARQUES, Floriano de Azevedo. “A singularidade da advocacia e as ameaças às prerrogativas profissionais”. Artigo publicado na data de 13.03.2008, no sítio eletrônico da Sociedade Brasileira de Direito Público - SPDP. Acesso em: 20.09.2013.

                6 HC nº 86.198-9/PR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, STF, 1ª Turma, Sessão de 17.04.2007.

                7 REsp nº 1.192.332/RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho. 1ª Turma, publicado em 19.12.2013.

                8 MARQUES, Floriano de Azevedo. “A singularidade da advocacia e as ameaças às prerrogativas profissionais”. Artigo publicado em 13.03.2008, no sítio eletrônico da Sociedade Brasileira de Direito Público - SPDP. Acesso em 20.09.2013.

                9 REsp nº 1.192.332/RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho. 1ª Turma, publicado em 19.12.2013.

                10 GRAU, Eros Roberto. Licitação e contrato administrativo - Estudos sobre a interpretação da lei. São Paulo: Malheiros, 1995, pp. 74-75.

                11 Inquérito 3.074/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, STF, 1ª Turma, Sessão de 26.08.2014.

                12 RExt nº 466.705-3, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, STF, 1ª Turma, Sessão de 14.03.2006.

                13 Inquérito nº 3.077, Rel. Ministro Dias Toffoli, STF, Plenário, Sessão de 29.03.2012.

                14 Consulta nº 652.069, Conselheiro Elmo Braz, TCE-MG, Plenário, Sessão de 12.12.2001.

                15 Consulta nº 735.385, Conselheiro Wanderley Ávila, TCE-MG. Plenário. Sessão de 17.10.2007.

 

                REFERÊNCIAS:

                BRANDÃO, Antônio José, apud MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010.

                BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 2012.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000. p. 1.124.

                CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

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* Advogada, Pós-Graduada em Direito Público pela Universidade Gama Filho; Pós-Graduada em Gestão, Controle e Transparência pela PUC-MG;Pós-Graduanda em Especialização em Gestão Pública

 

 

 

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