TRATAMENTO DE RESTOS A PAGAR EM FIM DE MANDATO - MEF35513 - BEAP

 

 

LAURITO MARQUES DE OLIVEIRA*

 

 

                O gestor público, no último ano do mandato, diante da existência de despesa empenhada e liquidada, mas sem suficiente provisão de caixa para pagá-la, se inscrever tal empenho em Restos a Pagar, cometerá infração em face da LRF? Incorrerá, ou não, em crime contra as finanças públicas?

                O ponto de partida para a compreensão do problema é o exame da concepção da Lei Complementar nº 1.011/2000 e da Lei nº 10.028/2000.

                O art.42 da LRF veda o gestor público, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, a contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para honrá-las.

                Desse modo, a Seção VI - Dos Restos a Pagar - do Capítulo VII da LRF ficou apenas com o art. 42.

                A Lei no 10.028/00 foi aprovada e o Congresso Nacional não retirou as restrições referentes à inscrição em Restos a Pagar sem suficiente provisão de caixa presentes no projeto de lei encaminhado pelo Poder Executivo. Desse modo, o Código Penal passou a contar com o art. 359-B, que proíbe que se ordene ou autorize a inscrição em Restos a Pagar de despesa que não tenha sido previamente empenhada ou que exceda ao limite estabelecido em lei, e com o art. 359-F. que pune o fato de se deixar de ordenar, e autorizar ou de promover o cancelamento do montante de Restos a Pagar inscrito em valor superior ao permitido em lei.

                O problema reside no fato de o Código Penal ter condicionado a eficácia dos arts. 359-B e 359-F à existência de limite estabelecido em lei. Resulta, então, a dúvida: pode-se extrair do ordenamento jurídico brasileiro esse valor permitido em lei? Está-se, nesse caso, diante de norma penal em branco?

                Tratando-se de aplicação de Direito Penal, existe o apego ao emprego literal da lei. Daí, pode-se argumentar que, se a LRF não trouxe expressamente esse limite fixado - pelos motivos acima relatados - os arts. 359-B e 359-F do Código Penal não podem incidir, estando com sua eficácia suspensa até que lei determine literalmente esse valor.

                No entanto, não se pode negar que a inscrição em Restos a Pagar, sem cobertura financeira, afronta o princípio do equilíbrio orçamentário, que foi o grande mote da LRF e está espraiado em todo o seu texto.

                Logo no art. 1º, § 1º, da LRF, que fixa o conceito de responsabilidade na gestão fiscal, constata-se que o novo regime pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas. Além disso, estabelece que a Lei de Diretrizes Orçamentárias disporá sobre O equilíbrio entre receitas e despesas (LRF, art. 4º 1, a). Ainda em favor do equilíbrio fiscal, fixa regras rígidas para as previsões de receita (art.12), restringe a concessão de renúncia de receita (art.14) e disciplina a geração de novas despesas (arts. 15, 16, 17, 21, 24). Como se vê, a LRF está sempre voltada a combater o déficit público.

                Agora, cabe uma análise apurada nos termos do art.42 presente na LRF. Lá está dito que é vedado ao agente público, nos Últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser paga integralmente dentro dele. Pergunta-se, então: em que momento se pode considerar consumado o ato de contrair obrigação de despesa? Acredita-se que tal ato só estará perfeito e acabado quando ocorrer a liquidação da despesa, vale dizer, quando acontecer a verificação do direito adquirido pelo credor, na forma do art. 63 da Lei nº 43.207/64 no decorrer das fases anteriores licitação, contrato e empenho - o poder público pode desistir do dispêndio, em face do princípio da supremacia do interesse público. Isso produziria, para efeitos criminais, a denominada desistência voluntária (Código Penal, art. 15). Assim sendo, é bastante improvável que uma despesa pública seja liquidada até abril de um ano para ser paga no exercício subsequente - principalmente em se tratando de fim de mandato - hipótese em que se escaparia do prazo de dois quadrimestres previstos no artigo acima mencionado.

                Portanto, vê-se que esse dispositivo, a lei tenta impedir o déficit fiscal na sua origem, ou seja, na ocasião do aparecimento da obrigação liquida, certa e exigível que não pode ser paga até o final do mandato. Nesse sentido J. Teixeira Machado Jr. e Heraldo da Costa Reis comentando o art. 42 da LRF, observam que “em realidade a questão de programação de caixa cujo objetivo o de manter os seus níveis em eficiência para aceder a essas obrigações" Nessa programação, serão considerados, na determinação da disponibilidade de caixa, os encargos e despesas compromissadas a pagar até o final do exercício (LRF art,.42, parágrafo único)

                É importante lembrar que os recursos legalmente vinculados a finalidade especifica serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto de sua vinculação, ainda que em exercício diverso daquele em que ocorreram ingresso (LRF, art. 8, parágrafo único). Por isso, a disponibilidade de caixa constar, na escrituração das contas públicas, de registro próprio, de modo que os recursos vinculados a órgão, fundo ou despesa obrigatória fiquem identificados e lançados de forma individualizada (LRF, art.50, I).

                Como corolário, tem-se que os fluxos financeiros elaborados até o final do exercício, para efeito de se apurar a capacidade de pagamento necessária para que se possa contrair novas obrigações de despesa, dentro dos oito ditados meses do mandato, devem ser feitos isoladamente, ou seja, um para cada natureza de recurso, sendo que os saldos deles não se pode compensar. Diga-se, ainda, que essa programação financeira deve ser feita por cada um dos Poderes e órgãos referidos no art. 20 da LRF Eis o planejamento exigido pelo regime de Gestão Fiscal Responsável.

                Ressalte-se a relação de causa e efeito entre o ato de contrair obrigação de despesa que não possa ser paga e a inscrição em Restos a Pagar sem suficiente provisão de caixa. Pode-se até falar em excesso de zelo do projeto original da LRF para com o equilíbrio fiscal quando se pretendia considerar como infração duas situações intrinsecamente correlacionadas, quais sejam, contrair obrigação de despesa sem previsão de pagamento (causa) e inscrever em Restos a Pagar sem a correspondente Reserva financeira (efeito).

                A relação da conduta descrita no art. 42 com a má Inscrição em Restos a Pagar está expressa na própria LRF, quando coloco tal artigo na Seção VI do Capítulo VII DA DIVIDA E DO ENDIVIDAMENTO - intitulada DOS RESTOS A PAGAR.

                Desse modo, pode-se dizer que os elementos históricos presentes na formulação da LRF, bem como sua interpretação lógico-sistemática, conduzem a ideia de que não é possível o teste público nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, inscrever despesas em Restos a Pagar sem suficiente provisão de caixa. Aliás, a aceitação de tal prática negaria toda a finalidade da LRF Bom, se não é possível inscrever despesas em Restos a Pagar nessas condições, como ficaria a situação do fornecedor de bens ou serviços que, de boa-fé- mas nessa situação, negócios como ente da Federação? Na hipótese de persistir o interesse do poder público ou o direito do credor, a despesa será regularmente orçada e empenhada no exercício subsequente conta da rubrica DESPESAS DE EXERCICIOS ANTERIORES (Lei nº 4.320 64, art.37). Desse modo, fica preservado o equilíbrio nas contas públicas Assim, a LRF quer também que aqueles que contratam com o governo atuam como fiscais da aplicação do dinheiro público no último ano do mandato do governante. Nessa época, por força do período eleitoral, a propensão a gastos moderados tende a crescer.

                Na prática, não será possível a aplicação simultânea dos arts 359-B, 359-C 359-F do Código Penal contra o mesmo agente (hipótese que poderia ocorrer no caso de prefeito reeleito, por exemplo). Isso porque as condutas descritas em tais dispositivos dos dependentes umas das outras, representando verdadeiro encadeamento de fatos nesse caso, aplicam-se a sanção mais grave.

                Como se não bastasse toda esta complicação, a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) editou a Portaria 447, de 13 de setembro de 2002, na qual define regra segundo a qual, por cento do encerramento de cada exercício, o beneficiário de transferência intergovernamental, observando o roteiro contábil contido no quadro anexo a citada portaria, deve contabilizamos Restos a Pagar registrados pela Unido relativos a tributos já arrecadados e que compor a transferências constitucional o ano seguinte como RESTOS A RECEBER (ATIVO FINANCEIRO) em contrapartida a TRANSFERENCIAS INTERGOVERNAMENTAIS (RECEITAS). O neologismo RESTOS A RECEBER desafia o regime de caixa imposto para a contabilização das receitas públicas, segundo o art. 35, 1, da Lei nº 4.320/64.

                Em consequência, no final do ano de 2004. A Gerência de Apoio as Relações Federativas (GEAF). pertencente a Coordenação-Geral de Operações de Crédito de Estados e Municípios (COPEM), integrante da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), emitiu um comunicado, que não tem número nem data, segundo o qual com vistas ao cumprimento do disposto na Portaria nº 447, de 13 de setembro de 2002. Publicada no DOU de 18.09.2002, informamos que o repasse dos Fundos de Participação a ser creditado no dia 10 de janeiro de 2005 deverá ser contabilizado como receita orçamentária do exercício de 2004". O fato curioso é que o mesmo oro da STN, intitulado COPEM através do Boletim - Ano VIII, nº 12, p.1 de dezembro de 2003, assinala que com vistas ao cumprimento do disposto na Portaria " 447, de 13 de setembro de 2002-DOU de 18.09.2002. Informamos que o repasse dos Fundos de Participação creditado no dia 09 de janeiro de 2004 deverá ser contabilizado como receita do exercício de 2004 Como se depreende, a COPEM repete os termos nas duas Informações, mas utiliza critérios diferentes e contraditórios.

                Pode-se concluir que, pelo conjunto da obra, a posição da COPEM/STN afronta expressamente dois dispositivos da Lei nº 4.320/64. O art.34 que diz que o exercício financeiro coincidirá com o ano civil (1º de janeiro a 31 de dezembro). Mas, para aquele órgão, o ano de 2004 teve 366 dias para os Municípios empenharem despesas e 376 dias para arrecadar receitas. O art. 35, 1, determina que pertencem ao exercício financeiro as receitas nele arrecadadas (regime de caixa). Aquele órgão, porém, informa aos Municípios que devem contabilizar o repasse dos Fundos de Participação creditado no dia 10 de janeiro de 2005 como receita orçamentária de 2004, tendo como contrapartida uma tal conta RESTOS A RECEBER (sic), supostamente constante do ATIVO FINANCEIRO. Esse registro contábil só faz sentido quando se trata do regime de competência, segundo o qual as receitas são contabilizadas não em função da arrecadação, mas do fato gerador.

                Pior que os arroubos da COPEM/STN foi o estardalhaço promovido pelas Federações de Municípios de todo o País que, confundindo os denominados valores a receber com disponibilidade de caixa, orientaram os prefeitos com mandato em 2004, a inscrever empenhos em Restos a Pagar até o limite dos repasses das transferências constitucionais a serem creditados no dia 10 de janeiro de 2005.

 

 

*Contador, Auditor, Diretor da Magnus Auditores e Consultores Associados, Consultor do BEAP.

 

 

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