A DESVINCULAÇÃO DE RECEITAS TRIBUTÁRIAS NO BRASIL - MEF36438 - BEAP

 

MÁRIO LÚCIO DOS REIS*

 

                Tem-se ouvido tanto falar da necessidade e da urgência da reforma do sistema tributário brasileiro que nos sentimos compelidos a desenvolver o presente estudo, abordando as vinculações e desvinculações de receitas, cujas conclusões foram elucidativas e interessantes, demonstrando que pequenos ajustes de nosso arcabouço jurídico podem resolver, em boa parte, os problemas da nossa complexa distribuição das receitas tributárias e seus impactos perniciosos e diretos na Economia, resultando em desemprego, pobreza e carga tributária insuportável.

                Constatamos que os problemas nem sequer estão no texto original da Carta Magna de 1988 e sim nos penduricalhos que se lhe foram acrescentando através das Emendas Constitucionais, cujos textos muitas vezes evidenciam interesses escusos de partidos e grupos econômicos e/ou políticos, que promovem suas aprovações quase sempre em sessões extraordinárias, às pressas e sem estudos técnicos adequados.

 

                MOTIVOS DAS VINCULAÇÕES DAS RECEITAS

                O orçamento público é uma imprescindível peça de planejamento científico que, em tese, evidencia, de um lado, todas as receitas possíveis e previsíveis para arrecadação em determinado período, pelo Poder Central do Governo, o qual aplicará estes recursos na manutenção da máquina administrativa, no custeio dos serviços públicos prestados à população e nos investimentos públicos devidamente planejados, de tal forma que serão sempre coincidentes os totais da receita e da despesa, salvo eventuais déficits ou superávits que sempre devem ser temporários, pois na Administração Pública não há que se falar em lucro ou prejuízo.

                Modernamente desenvolveu-se a técnica do orçamento por programas ou por projetos, no qual cada receita constitui-se como fontes de recursos para aplicação em determinadas despesas ou investimentos previamente fixados, que em última análise é a vinculação de 100% das receitas às dotações de despesas dos projetos ou programas a ela vinculados.

                Teoricamente orçamento é o plano de governo aprovado pelos representantes do povo, que é o Poder Legislativo, ao qual se obriga o Poder Executivo, figura também denominada de orçamento impositivo.

                Todavia, esta é uma teoria ideal, porém utópica porque a realidade muda com muita frequência as previsões orçamentárias, dai a necessidade de ferramentas corretivas para minimizar estes impactos na execução do orçamento. Uma delas é a vinculação constitucional para priorizar programas permanentes e prioritários de longo prazo, como aconteceu com a educação e saúde, que tiveram seus percentuais de vinculação fixados.

                Na constituição de 1988, onde a União aplicará no mínimo 18% e os Estados e Municípios 25% no ensino básico e 15%, nas ações e serviços de saúde, ambos calculados sobre as receitas de impostos e transferências recebidas.

                Destacam-se também as vinculações fixadas nos arts. 158 e 159 da Constituição, relativas a impostos que embora arrecadados pela União, por questões estratégicas, na realidade pertencem, também, aos Estados e Municípios, quais sejam o imposto de renda, o IPI, o ITR, o ICMS e o IPVA.

                Os impostos de renda e de produtos industrializados são arrecadados pela União, que retém 53% para si e redistribui 47% para formar os fundos de participação dos Estados e dos Municípios, FPE e FPM, além de 3% para os programas de desenvolvimento regional do Norte/Nordeste. A União arrecada também o imposto territorial rural, que repassa 50% aos municípios e, por fim, os impostos estaduais, ICMS e IPVA, arrecadados pelos Estados, que repassam aos Municípios, respectivamente, 25% 50%.

 

                A DESVINCULAÇÃO DE RECEITAS

                Assim sendo a carta Magna de 1988, em seu art. 167, inciso IV, vedou a vinculação de receitas, ressalvando apenas os casos essenciais e justificados nos arts. 158 e 159, nada mencionando, em nenhum momento, sobre a figura da desvinculação, que é realmente estranha, pois equivale a um cheque em branco concedido ao Executivo, que a partir daí, pode gastar quase como se fossem de sua propriedade os recursos desvinculados.

                Funcionou muito bem a Constituição Federal por dez anos sem conhecer em seu texto a palavra ”Desvinculação”, até que em 21.03.2000 surge Emenda Constitucional nº 27/2000, que acrescentou ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT, o artigo 76, que desvinculou de qualquer órgão, fundo ou despesa 20% da arrecadação de impostos e contribuições do período de 2000 a 2003. A partir daí, ficou fácil renovar e prevalecer até hoje a sistemática, a teor da EC - 42/2003, que prorrogou até 2007, da EC - 56/2007, que prorrogou até 2011, e da EC - 68, que prorrogou até 2015, e finalmente a EC - 93/2016, que prorrogou até o ano 2023, o malsinado artifício, um dos grandes responsáveis por ser a arrecadação da União talvez maior do que a somatória de todos os Estados e Municípios, em conjunto. Esta última, a EC - 93/2016, elevou o percentual para 30% e excluiu os impostos da base de cálculo, passando a incidir somente sobre as contribuições sociais, no âmbito da União. Também nesta a EC - 93/2016 foram acrescidos os artigos 76-A e 76-B no ADCT da Constituição, nos quais foram contemplados os Estados e Munícios com o mesmo percentual de 30%, porém incidentes somente sobre os tributos, fato que mais parece ferramenta de convencimento do que ajuda real, pois nos Estados e Municípios os impostos são receitas ordinárias, cujas fontes de recursos são realmente livres, podem quitar quaisquer despesas do orçamento, sabendo-se que mal pagam a folha de salários, sobrando muito pouco para gastos discricionários do Executivo.

 

                IMPACTOS CONTÁBEIS DA DESVINCULAÇÃO DE RECEITAS

                Tivemos acesso aos balanços consolidados da União, exercícios de 2018 e 2019, publicados no Portal do Tesouro Nacional, dos quais podemos colher alguns números para fazermos uma ideia dos efeitos da desvinculação de receitas a saber:

 

 

(R$ milhões)

(R$ milhões)

2019

ESPECIFICAÇÃO

VALOR 2019

VALOR 2018

% da RECEITA TOTAL

Impostos e taxas

545.812

507.176

18,25%

Contribuições

872.771

864.297

29,18%

SOMA

1.418.583

1.371.493

47,43%

Transferências constitucionais

(298.260)

(266.521)

9,97%

Contribuição para INSS

(404.528)

(380.190)

13,53%

Benefícios previdenc. e assist.

(858.091)

(816.140)

28,69%

Transferências Concedidas

(420.457)

(384.481)

14,06%

TOTAL GERAL DA RECEITA

2.990.869

2.940.682

-

Desvinc. Imp + Contrib (2000 a 2016) = 20%

283.716

274.298

-

Desvinc. Contrib (2017 a 2019)

261.831

259.289

-

 

                COMENTÁRIOS - Analisamos os dados apenas do ano 2019, podendo-se observar que foram pouco diferenciados em relação aos valores do exercício de 2018.

                1. Nos exercícios 2000 a 2017 a desvinculação incidiu sobre impostos + contribuições, que somaram R$ 1,4 bilhões, 20% Desvinculado = R$ 283,7 bilhões.

                2. Já em 2018/19 incidiu somente sobre as contribuições = R$ 872,7 bilhões, 30% = R$ 261,8 bilhões, podendo-se observar que apesar do aumento do 50% no percentual (de 20% para 30%), o valor permaneceu no mesmo patamar.

                3. As transf. Constitucionais, que são, basicamente, FPE e FPM para os 27 Estados e 5.370 municípios, somaram apenas R$ 298,6 bilhões ou 9,97% do bolo arrecadado.

                4. Por sua vez as transferências voluntárias, convênios, somaram R$ 420,4 bilhões = 14,06% da arrecadação, que em tese é parte dos recursos desvinculados distribuídos sem critérios previstos em lei.

                5. As contribuições para o INSS somaram R$ 404,5 bi contra os benefícios pagos de R$ 858,1 bi, fato que explica o já tradicional rombo no sistema previdenciário do País.

                6. Observa-se que as receitas desvinculadas, da ordem de R$ 283,7 bi, incidem justamente sobre as contribuições, que do contrário seriam vinculados à Previdência Social, sendo assim o principal motivo do tenebroso déficit previdenciário.

 

                CONCLUSÃO

                Neste singelo exercício de análise aritmética do balanço da União, podemos entender a desvinculação de receitas como uma das mais perniciosas invenções do nosso sistema orçamentário, através de leis complementares ardilosamente aprovadas, cujos resultados explicam não só boa parte do rombo previdenciário, como também indicam a origem dos recursos aplicados em aquisição de refinaria desativada de petróleo no exterior, construções faraônicas de estádios e outras obras para a Copa do Mundo, construções de portos, aeroportos, estradas, pontes e outros investimentos em países estrangeiros, sem falar nas fraudes e desvios já apurados pela Operação Lava Jato.

                Assim sendo, a reforma tributária, se não for implementada pelos diversos estudos já disponibilizados por várias entidades e profissionais renomados, poderia ser muito bem iniciada pela simples revogação dos artigos. 76,76-A e 76-B do ADCT da Constituição Federal de 1988.

 

 

*Contador, Auditor, Economista, Professor Universitário, Consultor do BEAP, Auditor Gerente da Reis e Reis Auditores Associados.

 

 

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