AÇÃO CIVIL PÚBLICA - VIOLAÇÃO A DIREITOS METAINDIVIDUAIS - DANO MORAL COLETIVO - DECISÃO DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO - MEF36688 - LT

 

 

PROCESSO TRT/RO Nº 0010112-98.2015.5.03.0129

 

 

Recorrentes:        Ministério Público do Trabalho da 3ª Região, Transportadora Sulista S/A

Recorridos:          Ministério Público do Trabalho da 3ª Região, Transportadora Sulista S/A

Relator(a):            Sebastião Geraldo de Oliveira

 

E M E N T A

 

                AÇÃO CIVIL PÚBLICA. VIOLAÇÃO A DIREITOS METAINDIVIDUAIS. DANO MORAL COLETIVO. O ordenamento jurídico admite a reparação de danos morais causados não só às pessoas físicas e jurídicas, como à coletividade, genericamente considerada. Se, portanto, há desrespeito a direitos fundamentais dos trabalhadores, mediante descumprimento de normas relativas à jornada de motoristas profissionais, expondo-os regularmente a sobrejornada e sem a devida fruição dos intervalos e das pausas de direção, põe em risco não só o trabalhador, mas todos os usuários do sistema de transporte terrestre, sendo devida a indenização pelos prejuízos causados na esfera coletiva.

                Vistos os autos, relatados e discutidos os Recursos Ordinários em Ação Civil Pública, oriundos da 1ª Vara do Trabalho de Passos, proferiu-se este acórdão:

 

R E L A T Ó R I O

 

                O MM. Juízo da Vara do Trabalho de origem, por meio da r. sentença (ID 49be36e), seguida pela proferida em sede de Embargos de Declaração (ID b9ba922) julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados.

                Inconformadas, ambas as partes recorrem. O Ministério Público do Trabalho interpõe Recurso Ordinário (ID 47b237e) versando sobre: a) inconstitucionalidade de dispositivos da Lei nº 13.103/2015, e; b) dano moral coletivo.

                Já o recurso da empresa Ré (ID 4b415dd) requer a reforma da r. sentença no tocante: a) tratamento diferenciado e violação ao princípio da isonomia; b) alteração do percentual de flexibilização das obrigações de fazer e da astreinte fixada, e; c) fixação de novo valor à astreinte, e; c) dano moral coletivo.

                Contrarrazões pela Ré (ID 35106f6) e pelo Autor (ID 5da17c1), sendo que este último requer o não conhecimento de documentos juntados pela Ré em fase recursal.

                É o relatório.

 

                JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE

                COGNOSCIBILIDADE DOS DOCUMENTOS JUNTADOS EM SEDE RECURSAL PELA RÉ

                O Ministério Público do Trabalho suscita em Contrarrazões o não conhecimento dos documentos juntados pela Ré, pois se tratam de balanços financeiros desta e que já poderiam ter sido juntados em outro momento, incidindo sobre eles a preclusão.

                Com razão.

                O documento juntado (ID 5ba74b7) pela Ré se trata de balanço financeiro da empresa referente ao ano de 2015 e embora tenha sido concluído após o momento para a apresentação de Contestação, foi obtido antes da audiência de instrução e, via de consequência, antes de ter sido proferida a r. sentença. Assim, não se trata de documento novo para fins do disposto no art. 435 do NCPC e do firmado na Súmula nº 8 do TST, não havendo prova de impedimento que justificasse a juntada apenas no atual momento processual.

                Deixo de conhecer, portanto, o referido documento juntado, bem como as razões recursais amparadas nele. Registro que ante tal conclusão acerca da cognoscibilidade em fase recursal, desnecessária a determinação de desentranhamento.

 

                CONCLUSÃO DA ADMISSIBILIDADE

                Presentes e regulares os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade, conheço de ambos os apelos interpostos, exceto o recurso interposto pela Ré quanto aos fundamentos que se referem ao documento ID 5ba74b7, conforme fundamentado no tópico 2.1.

 

                JUÍZO DE MÉRITO

                RECURSO DO AUTOR

                CONSTITUCIONALIDADE DE DISPOSITIVOS DA LEI Nº 13.103/2015

                O Autor não se conforma com a improcedência de seus pedidos de declaração de inconstitucionalidade e violação de convencionalidade das alterações trazidas pela Lei nº 13.103/2015 quanto aos dispositivos da legislação trabalhista e do Código de Trânsito Brasileiro – CTB acerca dos motoristas profissionais.

                Defende, assim, que a Lei nº 13.103/2015 no tocante aos dispositivos que caracterizam redução de direitos previstos anteriormente na Lei nº 12.619/2012, em particular a redação dada aos arts. 235-C, caput e § 3º, da CLT e ao art. 67-C, caput e § 1º, do Código de Trânsito Brasileiro, devem ser declarados inconstitucionais ou, ainda, haver o devido controle de convencionalidade, a fim de que seja julgada totalmente procedente a presente Ação Civil Pública no que diz respeito a: a) impossibilidade de fracionamento de intervalo intrajornada; b) impossibilidade de se ultrapassar o limite fisiológico de 10 horas diárias de trabalho, e; c) intervalo especial de motorista quanto ao tempo máximo de direção contínua de veículo.

                Argumenta que a referida lei violou direitos e interesses dos empregados motoristas, pois possibilitou a prorrogação de jornada por até 150% do limite constitucional, reduzido intervalos interjornadas, DSR, intervalos de direção, além de outros diversos direitos concernentes à sua jornada de trabalho, sendo que todas as disposições da Lei de 2015 visaram a possibilitar que os motoristas empregados laborassem por períodos mais longos, com menos intervalos, aumentando os riscos de acidentes nas estradas.

                Nessa esteira, conclui que a referida lei trouxe acentuado retrocesso social, pois dispõem os arts. 2º, item I, e 26 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pacto de San José da Costa Rica):

 

                Art. 2º(...)

                Item I. Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, PROGRESSIVAMENTE, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas. (grifos na transcrição feita pelo Autor, ID 47b237e, p. 6)

 

                Artigo 26 - Desenvolvimento progressivo

 

                Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir PROGRESSIVAMENTE a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados. (idem)

 

                No mesmo sentido, inclusive, transcreve o art. 1º do Protocolo de San Salvador, ressaltando que o art. 7º do referido Protocolo dispõe:

 

                "Artigo 7 - Condições justas, equitativas e satisfatórias de trabalho Os Estados Partes neste Protocolo reconhecem que o direito ao trabalho, a que se refere o artigo anterior, pressupõe que toda pessoa goze do mesmo em condições justas, equitativas e satisfatórias, para o que ESSES ESTADOS GARANTIRÃO EM SUAS LEGISLAÇÕES, de maneira particular:

                (...)

                g. Limitação razoável das horas de trabalho, tanto diárias quanto semanais. As jornadas serão de menor duração quando se tratar de trabalhos perigosos, insalubres ou noturnos;" (destacou-se)

 

                Destacou, ainda, que tais diplomas legais, por se tratarem de normas internacionais sobre direitos humanos, na hierarquia do ordenamento jurídico brasileiro estão acima das Leis Ordinários e abaixo da Constituição Federal, conforme decidido pelo STF no julgamento do RE 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 3-12-2008, Plenário, DJE de 5-6-2009, com repercussão geral reconhecida. Todavia, a redação do art. 235-C, caput, da CLT conferida pela Lei nº 13.103/2015, ao possibilitar por meio de negociação coletiva a prorrogação em até 4 horas extras por dia e, em consequência, jornadas de 12 horas está a permitir seja transacionada norma de saúde e segurança do trabalho.

                Quanto ao disposto no art. 235-C, §3º, da CLT a redação dada pela referida Lei de 2015 permitiu a redução de fato da aludida pausa para apenas 8 horas por dia sob o argumento de possibilitar o fracionamento do intervalo interjornada.

                Registra, ainda, que a própria Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres - CNTTT ajuizou a ADI nº 5.322/22, Rel. Min. Teori Zavascki, que discute a constitucionalidade da Lei nº 13.103/2015, sem ter ainda apreciação de mérito pelo Supremo Tribunal Federal.

                O Autor postula desde a petição inicial a declaração de inconstitucionalidade do disposto nos arts. 235-C, caput e § 3º, da CLT e ao art. 67-C, caput e § 1º, do Código de Trânsito Brasileiro, alegando que tais normas violam o disposto no caput do art. 7º da Constituição Federal e tratados internacionais sobre direitos humanos firmados pelo Estado brasileiro, inobservando o patamar mínimo civilizatório estabelecido, de modo que a Lei nº 13.103/2015 viola o ordenamento constitucional e convencional ao abolir direitos e garantias individuais e viola o princípio da vedação de retrocesso, o que é vedado pelo art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal.

                Defende, assim, que ante interpretação sistemática dos arts. 7º, XIII, da Constituição Federal e 59, § 2º, da CLT, a jornada de trabalho máxima deve ser a de 8 horas por dia, autorizando-se a prorrogação de mais 2 horas extras por dia.

                Sem razão.

                A categoria dos motoristas profissionais foi uma das que mais ganhou expansão no final da década de 1950 no governo de Juscelino Kubitschek pelo Programa de Integração Nacional - PIN, ligando por terra, por exemplo, milhares de quilômetros de extensão, como na construção da rodovia BR-010 (Belém-Brasília) e a BR-163 (Cuiabá-Santarém), que contam, somadas, com quase 5.000 km de extensão, sendo cerca de 1.000 Km não asfaltados, constituindo-se eixo fundamental para a expansão do modelo de integração econômica, política e de ocupação territorial de nosso país.

                Ciente que conquanto se trate de ramo econômico de grande importância econômica e social, a ausência de regulamentação da profissão de motorista, somada às condições precárias do sistema viário brasileiro, ocasionavam um elevado custo humano, com alta taxa de acidentalidade.

                Em face desse cenário, o Poder Legislativo editou a Lei nº 12.619/2012, que acrescentou a seção IV-A na CLT, trazendo ao ordenamento jurídico brasileiro, pela primeira vez, uma regulamentação específica para os motoristas profissionais empregados.

                A norma, todavia, foi apontada como de difícil exequibilidade, seja pelos custos decorrentes da alteração, seja pela estrutura precária de tráfego e apoio das estradas brasileiras, motivo pelo qual poucos meses após a promulgação da referida lei foi proposto o PLC nº 4.246/2012, que depois de algumas alterações e incorporações foi convertido na Lei nº 13.103/2015.

                Dentre as alterações trazidas, a nova redação do caput do art. 235-C da CLT, ao permitir a extensão do limite de jornada de 8 horas em mais 2 horas por decisão individual e, eventualmente, por mais 4 horas por meio de norma coletiva visa a atender as condições singulares de trabalho da categoria, além de prestigiar a autonomia privada coletiva e o disposto no art. 7º, XXVI, da Constituição Federal.

                Quanto ao fracionamento do intervalo interjornada de que tratam o § 3º do art. 245-C da CLT e art. 67-C, § 3º, do CTB, são normas que estabelecem que será de 11 horas o tempo destinado a esse intervalo, podendo, entretanto, ser fracionado de forma a garantir no mínimo 8 horas ininterruptas, adequando-se à realidade de haver inclusive dificuldades de locais próprios para os trabalhadores realizarem essas pausas, considerando que é comum haver nas estradas longos percursos sem infraestrutura de apoio aos motoristas.

                Não há, pois de se falar em retrocesso social ou violação dos apontados dispositivos constitucionais ou convencionais pela edição dos mencionados artigos cuja redação foi alterada pela Lei nº 13.103/2015, pois a norma apenas teve por objetivo adequar a legislação especial dos motoristas profissionais à realidade das condições de trabalho e infraestrutura, inclusive de tráfego e apoio, encontradas nas estradas brasileiras, sendo certo que não houve propriamente a eliminação de direitos, mas apenas a possibilidade de flexibilização conforme a vontade da categoria por meio do exercício da autonomia privada coletiva e representação sindical no tocante aos limites de jornada e, de outro lado, possibilitar ajustes com relação ao gozo de intervalo interjornada à realidade das estruturas das estradas brasileiras, tornando-se, por vezes, até mais benéficas ao próprio trabalhador, que poderá usufruir do intervalo interjornada em locais mais apropriados.

                Nessa esteira, nada a prover.

 

                DANO MORAL COLETIVO

                O Autor postula, em síntese, seja majorada a condenação a título de dano moral coletivo de R$500.000,00 (quinhentos mil reais) para R$1.000.000,00 (um milhão de reais). Defende, para tanto, que a majoração se justifica pelo fato de o capital social da empresa ser de R$8.500.000,00 (oito milhões e quinhentos mil reais), conforme registrado no ID 85e864a, p. 5, além de que ter havido culpa grave (ID 49be36e, p. 6).

                Examino.

                Assim dispõe o art. 1º, IV, da Lei nº 7.347/85, que disciplina a Ação Civil Pública:

 

                Art. 1º. Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:

                [...] IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.

 

                A Lei nº 8.078/90, por sua vez, define o conceito legal de interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos nos incisos I a III do parágrafo único de seu art. 81:

 

                Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

 

                Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

                I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

                II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

                III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

 

                Diante dos dispositivos supracitados, o instituto do dano moral coletivo vem ganhando cada vez mais acolhida no campo doutrinário e jurisprudencial, notadamente pela constante evolução das relações sociais, que se tornam cada vez mais complexas e globalizadas, destacando-se em razão desta nova realidade os interesses ou direitos individuais homogêneos, difusos e coletivos, alcançando toda a coletividade.

                A doutrina conceitua o instituto do dano moral coletivo como a lesão injusta e intolerável a interesses ou direitos titularizados pela coletividade, considerada em seu todo ou em qualquer de suas expressões (grupos, classes ou categorias de pessoas), os quais se distinguem pela natureza extrapatrimonial e por refletir valores e bens fundamentais tutelados pelo sistema jurídico (MED EIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo. 3ª ed. Ed. LTr, 2012. p. 170).

                No campo trabalhista, a situação não é distinta para o acolhimento do dano moral coletivo, diante da diversidade de situações concretas que envolvem a defesa de direitos difusos e coletivos que envolvem determinada classe de pessoas, trabalhadores ou categoria profissional, a serem tutelados pelo Ministério Público do Trabalho por meio de ajuizamento de Ação Civil Pública. Veja-se, a propósito, aresto proferido no âmbito do TST que reforça essa convicção:

 

                INDENIZAÇÃO POR DANO IMATERIAL COLETIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL - EVOLUÇÃO JURÍDICA - DESENVOLVIMENTO DE CATEGORIAS APTAS A LIDAR COM VIOLAÇÕES DE DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS - REPARAÇÃO DE LESÃO OFENSIVA AOS VALORES FUNDANTES DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 - NÃO PREENCHIMENTO DAS VAGAS RESERVADAS PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA - ART. 93 DA LEI Nº 8.213 /91 - OFENSA A DIREITO DIFUSO - DIREITO FUNDAMENTAL À IGUALDADE MATERIAL - EFICÁCIA HOROZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. (...) O que releva investigar, no caso em tela, é a gravidade da violação infligida pela ré à ordem jurídica. A coletividade é tida por ofendida, imaterialmente, a partir do fato objetivo da violação da ordem jurídica. Assim, verificado nos autos que a ré, não obstante instada pelo Ministério Público do Trabalho a firmar termo de ajuste de conduta, resistiu por quatro anos em não cumprir a cota de portadores de deficiência prevista no art. 93 da Lei nº 8.213/91, descumprindo, injustificadamente, norma garantidora do princípio da igualdade material e da não discriminação das pessoas portadoras de necessidades especiais e, por conseguinte, furtando-se à concretização de sua função social, é devida a reparação da coletividade pela ofensa aos valores constitucionais fundamentais. Recurso de revista não conhecido. (TST - RR 65600-21.2005.5.01.0072, 4ª Turma, Relator: Ministro Vieira de Mello Filho, Publicação 22.06.2012)

 

                Para que se configure o dano moral coletivo na seara trabalhista, é necessário que a conduta ilícita cause repulsa à sociedade pela transgressão de normas de proteção à dignidade da pessoa humana e/ou direitos fundamentais pertinentes às relações de trabalho, que podem ser direcionadas a determinado grupo.

                Conforme visto, ficou devidamente comprovado que a Reclamada não cumpre os limites de jornada e não observa o correto cumprimento dos intervalos de condução dos motoristas e os inter e intrajornada, pondo em risco a segurança dos trabalhadores e dos demais usuários do sistema de transporte rodoviário.

                Portanto, é evidente a repulsa da sociedade quanto à conduta ilícita da Ré, uma vez que afronta reiteradamente as normas referentes aos limites de jornada e impõe riscos aos empregados e usuários das vias de transporte terrestre, sendo devida a reparação pelo dano extrapatrimonial causado à coletividade, pois presentes os pressupostos consubstanciados nos arts. 186 e 927 do Código Civil, sem ignorar ainda o disposto no art. 5º, inciso X, da Constituição Federal.

                Quanto ao valor fixado para o dano moral coletivo, o MM. Juízo de origem fixou que o arbitramento de R$ 500.000,00 levou em consideração que o capital social da Ré é de R$ 8.500.000,00 (ID 85e864a, p. 5), sua qualificação perante o mercado de transportes (http://www. revistafatorbrasil.com.br/ver_noticia.php?not=311347, visitado em 03.10.16, às 14h19), e que registra que a Ré em dezembro de 2015 era a 9ª maior e melhor empresa transportadora de carga do Brasil, a extensão do dano e o grau de culpa grave. Entendo, todavia, que o não enseja majoração, pois o montante fixado já equivale a quase 7% do valor do capital de toda a empresa, sendo que a elevação dessa quantia poderia colocar em risco o regular funcionamento da atividade empresarial, além de se revelar desproporcional em face da extensão do dano.

                Convém registrar que o valor da indenização será também apreciado oportunamente no recurso da ré.

                Por esse motivo, nego provimento.

 

                RECURSO DA RÉ

                TRATAMENTO DIFERENCIADO E VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA

                A Ré defende que incumbe ao próprio empregado motorista o controle a de sua jornada, não podendo ser apenada em caso de descumprimento dessa determinação legal pelo empregado.

                De outro lado, defende que a infraestrutura das estradas brasileiras é precária, além de imprevistos com o veículo, sendo inevitável o excesso de jornada, sendo tais dificuldades e ilegalidade comuns no segmento do transporte rodoviário de cargas.

                Sustenta também que o descumprimento da legislação trabalhista foge ao controle da empresa e que se trata de prática comum em outras empresas do ramo, sendo que a fixação de obrigação de fazer e de não fazer com cumulação de astreintes quando a própria legislação já prevê penalidade específica constitui, no seu entender, bis in idem, havendo também prejuízo ao princípio da isonomia.

                Aduz, ainda, que é inviável a realização do controle de jornada de forma mais precisa por meio, a título de exemplo, de satélites, pois a legislação exige apenas diários de bordo, sendo normal haver pequenas discrepâncias nos registros.

                Sem razão.

                Embora sabido que a infraestrutura do transporte rodoviário brasileiro é deficitária, havendo trechos sem condições adequadas de sinalização e tráfego, além de longas extensões sem pontos adequados para a realização de pausas, os documentos dos autos revelam que o desrespeito aos limites de jornada pela Reclamada não se cingiam às dificuldades ordinárias externas, mas sim uma verdadeira incorporação da prestação habitual de horas extras dentro da sistemática rotineira da empresa, sendo que, por vezes, extrapolam todos os limites legais, inclusive os da Lei nº 13.103/2015, que veio ajustar as exigências principalmente de jornada às dificuldades enfrentadas pela falta de infraestrutura nas vias terrestres.

                A própria Ré defende que o descumprimento das normas relativas à jornada dos motoristas profissionais é recorrente na atividade econômica de transporte rodoviário de cargas... Sucede que não viola o princípio da isonomia o fato de a empresa ser condenada na presente Ação Civil Pública, uma vez que a atuação do Ministério Público do Trabalho se deu nos limites da lei, e o fato de não abarcar outras empresas não justifica o alegado tratamento diferenciado e prejudicial, pois ninguém se escusa do descumprimento da lei pelo fato de ela ser descumprida por outros, além de que não há prova nos autos de que todas as demais empresas do setor também incluíssem em seu modus operandi o reiterado e habitual desrespeito aos limites de jornada.

                Ao contrário: é o descumprimento da legislação trabalhista por uma empresa como a Ré que gera prejuízo à concorrência, uma vez que se beneficia pela redução dos custos da atividade econômica em comparação a uma empresa que cumpre rigorosamente os ditames legais, se beneficiando, portanto, da ilegalidade cometida.

                Ademais, a documentação dos autos comprova que havia o descumprimento dos parâmetros de jornada pela Ré, conforme se constata na manifestação ID 8cc761c, por exemplo, por amostragem.

                Quanto ao risco da atividade econômica de que trata o art. 2º da CLT, este inclui todas as dificuldades infraestruturais, concorrenciais, limitação de recursos e custos, não podendo a empresa Ré se eximir do cumprimento da legislação trabalhista em nome da competitividade de mercado ou inobservância da legislação por outra empresa.

                Veja-se que isso não caracteriza a alegada concorrência desleal, até porque tal instituto no campo econômico é tipificado para fins penais no art. 195 da Lei nº 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial), e para fins cíveis nos arts. 209 da referida Lei e 1.147 do Código Civil, sendo que não há previsão legal de que há concorrência desleal por exigir o cumprimento da lei.

                Noutro ponto, a fixação de astreintes para obrigações que a própria legislação já estabelece penalidades específicas não constitui bis in idem, pois tem finalidades diferentes. Enquanto a penalidade prevista em lei tem por objetivo impor uma sanção pelo descumprimento da norma, a astreinte tem por finalidade fixar uma multa não para que seja paga, mas para estimular ou desestimular uma conduta (obrigação de fazer ou não-fazer) e o cumprimento voluntário da obrigação, sendo que somente em caso de descumprimento é que ensejará a aplicação da multa. É o que dispõe o art. 536, §1º, do NCPC:

 

                Art. 536. No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente.

                § 1º Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial.

 

                Nesse sentido, destaco o seguinte precedente deste Eg. Tribunal Regional:

 

                OBRIGAÇÃO DE FAZER - CLÁUSULA NORMATIVA - DESCUMPRIMENTO - MULTA. A astreinte tem por finalidade assegurar a eficácia do comando judicial (art. 536, §1º, do CPC/2015) e, tratando-se de providência inibitória, e não de sanção, pode e deve ser fixada com o escopo de assegurar o cumprimento da decisão judicial. Há, assim, de ser arbitrada em importe razoável, mas eficaz, notadamente, diante do caráter coercitivo e de natureza econômica, tendo por escopo desestimular a inadimplência do devedor, a fim de conferir efetividade à tutela jurisdicional pleiteada sem que, em contrapartida, represente valor demasiadamente vultoso, que importe em enriquecimento sem causa do credor. (TRT da 3.ª Região; PJe: 0011292-37.2013.5.03.0092 (RO); Disponibilização: 01/09/2016, DEJT/TRT3/Cad.Jud, Página 288; Órgão Julgador: Quinta Turma; Redator: Marcio Flavio Salem Vidigal)

 

                Assim, as astreintes visam tão somente desestimular a ora Ré a cometer atos ilícitos em face da legislação trabalhista, não caracterizando bis in idem ou violação ao princípio da isonomia.

                Quanto a possibilidade de controle de jornada, o fato de a legislação determinar que haja controles de bordo assinado pelo motorista, tal determinação é complementar - e não incompatível - com a de controle de jornada, pois o diário de bordo referido no § 11 do art. 235-C da CLT tem por finalidade controlar o tempo de direção e a distância percorrida pelo empregado, o que não se confunde com o tempo de efetivo trabalho do motorista, sendo que se a própria empresa reconhece que o monitoramento por meio de satélite é capaz de identificar que o empregado saiu da rota, parou o caminhão ou houve algum incidente na viagem, é também capaz de controlar a efetiva jornada do empregado.

                Nego provimento.

 

                ALTERAÇÃO DO PERCENTUAL DE FLEXIBILIZAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES DE FAZER E DA ASTREINTE

                A Ré postula a reforma da r. sentença quanto as astreintes sob o argumento de que é natural haver excesso de jornada em razão da dificuldade de cumprimento das pausas da jornada. Por essa razão, requer que a imposição das astreintes somente seja devida se houver uma reincidência contumaz, estipulada em 10% das ocorrências possíveis.

                Com parcial razão.

                O MM. Juízo de origem fixou as seguintes obrigações de fazer e não fazer e multa em caso de descumprimento:

 

                "1- que se abstenha de exigir que seus empregados prestem mais de duas horas extras diárias, respeitando sempre o limite máximo de dez horas diárias, conforme artigos 59 e 235, § 1º, da CLT, salvo com relação ao empregados contratados sob o regime da cláusula 9ª da CCT de 2015/2016, nos termos do artigo 235-C caput e alterações advindas com a Lei nº 13.103/15, que autoriza a prorrogação da jornada de trabalho até a terceira e quarta hora extraordinárias;

                2- conceda intervalos intrajornadas de, no mínimo, uma hora para trabalhos cuja duração exceda 6 horas diárias e de, no mínimo, 15 minutos para trabalhos cuja duração seja de entre 4 e 6 horas diárias, nos termos dos artigos 71 e 235-C, § 2º, da CLT, já alterado pela Lei 13.103/2015, ressaltando que a norma coletiva (ID 1830577) não fez ressalva quanto ao fracionamento do respectivo intervalo, conforme determina a Lei 13.103/2015, art.4º, § 5º;

                3- conceda intervalos de, no mínimo, 11 horas entre duas jornadas de trabalho, nos moldes dos arts. 66 e 235-C, § 3º, da CLT, alterado pela Lei 13.103/2015.

                4- possibilite aos empregados motoristas a fruição do intervalo mínimo de 30 minutos de descanso dentro de cada seis horas na condução de veículo de transporte de carga, facultado o seu fracionamento, desde que o tempo de direção não ultrapasse cinco horas e meia contínuas no exercício da condução, nos termos do § 1º do art. 67-C do CTB.

                Deverá a reclamada observar as determinações supra, sob pena de multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), por violação a cada norma legal e por cada trabalhador prejudicado, reversível ao Fundo de Amparo ao Trabalhador".

 

                Ademais, conforme bem destacado pelo Autor em Contrarrazões, a Ré continuou a descumprir a legislação trabalhista inclusive após a tutela antecipada concedida (ID 144dd58, p. 17-18).

                Assim, flexibilizar as obrigações de fazer e permitir que a multa por descumprimento incidisse apenas quando o ilícito atingisse 10% dos empregados equivaleria a consentir com o descumprimento já realizado pela Reclamada e instituído em seu modus operandi, além de que reduziria a eficácia e a própria razão de ser da tutela ora pretendida.

                Quanto ao valor fixado às astreintes para cada trabalhador encontrado em situação de descumprimento da obrigação de fazer impõe registrar que não se trata de uma multa diária por empregado, mas sim a fixação de uma multa por evento que somente incidirá se descumprida a obrigação determinada.

                Todavia, o valor fixado para a multa se revela multo alto, devendo ser considerado que a Ré deverá alterar substancialmente seu modo de administração e que a aplicação das multas nesses valores poderá acarretar dificuldades econômicas à Ré. Assim, reputo razoável reduzir a multa para R$ 1.000,00 por violação a cada norma legal e por cada trabalhador prejudicado, reversível ao Fundo de Amparo ao Trabalhador.

                Provimento parcial.

 

                DANO MORAL COLETIVO

                A Ré postula a exclusão da indenização por danos morais ou, sucessivamente, a redução dos valores fixados.

                Com razão parcial.

                Reportando-me à fundamentação utilizada no tópico 3.1.2 quanto ao cabimento da indenização por danos morais coletivos, registro que esta é devida ante a constatação do descumprimento contumaz pela Reclamada das normas específicas de motorista profissional.

                Quanto ao valor fixado a título de danos morais coletivos, entendo que o pleito merece provimento parcial. Isso porque a indenização por dano moral coletivo de R$ 500.000,00 em face da Reclamada, ainda que tenha revelado razoável capacidade financeira, equivaleria, de uma só vez, em quase 7% do valor do capital de toda a empresa, sendo certo que a manutenção dessa quantia poderia colocar em risco o regular funcionamento da atividade empresarial, além de se revelar desproporcional em face da extensão do dano.

                Nessa esteira, considerando a capacidade econômica da Reclamada e em aplicação aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e a extensão do dano, dou provimento ao apelo para reduzir o valor da indenização por danos morais coletivos para R$ 150.000,00.

 

                CONCLUSÃO

                Ante o exposto, acolho a preliminar suscitada pelo Autor e deixo de conhecer do documento juntado pela Ré no ID 5ba74b7. Conheço de ambos os apelos interpostos, exceto o recurso interposto pela Ré quanto aos fundamentos que se referem ao aludido documento. No mérito nego provimento ao apelo do Autor e dou parcial provimento ao recurso da para: a) reduzir o valor arbitrado à indenização por dano moral coletivo para R$ 150.000,00, e; b) reduzir o valor da multa por violação a cada norma legal e por cada trabalhador prejudicado para R$ 1.000,00, nos termos da fundamentação.

                Reduzo o valor arbitrado à condenação também para R$ 200.000,00, e de custas para R$ 4.000,00, pela Reclamada, que poderá pleitear a devolução do excesso, na forma da Instrução Normativa nº 02/2009 da Secretaria do Tesouro Nacional, que prevê essa restituição, a ser providenciada pela Diretoria de Assuntos Orçamentário e Contábil deste Egrégio Tribunal.

                SGO/m

                Acórdão

 

                FUNDAMENTOS PELOS QUAIS,

                A Segunda Turma, do Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região, em sessão hoje realizada, à unanimidade, acolheu a preliminar suscitada pelo autor e deixou de conhecer do documento juntado pela Ré no ID 5ba74b7; conheceu de ambos os apelos interpostos, exceto o recurso interposto pela Ré quanto aos fundamentos que se referem ao aludido documento; no mérito, sem divergência, negou provimento ao apelo do autor e, por maioria de votos, deu parcial provimento ao recurso da ré para: a) reduzir o valor arbitrado à indenização por dano moral coletivo para R$150.000,00 e, b) reduzir o valor da multa por violação a cada norma legal e para cada trabalhador prejudicado para R$1.000,00, nos termos da fundamentação, vencido parcialmente o Exmo. Desembargador segundo votante que aplicava redução maior aos danos coletivos; reduziu o valor arbitrado à condenação também para R$200.000,00, e de custas para R$4.000,00, pela reclamada, a quem facultou pleitear a devolução do excesso, na forma da Instrução Normativa nº 02/2009 da Secretaria do Tesouro Nacional, que prevê essa restituição, a ser providenciada pela Diretoria de Assuntos Orçamentário e Contábil deste Egrégio Tribunal.

                Presidente: Exmo. Desembargador Jales Valadão Cardoso.

                Tomaram parte no julgamento: Exmo. Desembargador Sebastião Geraldo de Oliveira (Relator), Exmo. Desembargador Jales Valadão Cardoso e Exma. Desembargadora Maristela Íris da Silva Malheiros.

                Procurador do Trabalho: Dr. Eduardo Maia Botelho; que sustentou oralmente no sentido de que a empresa não observava a jornada de trabalho legal, em razão do quê o valor fixado em primeiro grau, a título de dano moral coletivo, deve ser mantido; requer, ainda, a manutenção do valor da penalidade imposto na sentença.

                Inscrito para sustentação oral: Dr. Carlos Eduardo Grisard, pela recorrente /ré.

                Secretária da sessão: Maria da Conceição Lopes Noronha.

                Belo Horizonte, 25 de outubro de 2016.

 

SEBASTIÃO GERALDO DE OLIVEIRA

Relator

 

(TRT/3ª R./ART., Pje, 28.10.2016)

 

BOLT8083---WIN/INTER

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